Conto de Allan Pitz
Preciso de um emprego tanto quanto um cão
precisa cheirar o rabo do outro nas ruas
N°07 – Fábrica de papelão Jesus é poder
Chega uma velhinha simpática com broches de igreja no conjuntinho florido. Prancheta e caneta na mão. Olhar atencioso.
- Nome?
- Matheus Fritz.
- Idade?
- 28 anos. Bem, na verdade, completarei no dia 23 deste mês.
- Qual o seu último emprego?
- Trabalho como escritor, já publiquei alguns livros, a senhora conhece o...
(Ela corta o assunto):
- Nenhum outro trabalho, um trabalho mais regrado, algo concreto?
- Bem, eu não diria regrado, mas... Trabalhei como ator por nove anos. E como diretor de teat...
(Cortando com frieza industrial):
− Sim, senhor Fritz, mas então o senhor não tem qualificações em carteira, nem tem experiência em trabalhos de expediente, e no seu currículo não consta nenhuma passagem por faculdade.
- Olhe, minha senhora, com esse dinheiro eu vou poder estudar jornalismo e continuar escrevendo meus livros. Não haverá nenhum funcionário melhor nesta fábrica, eu lhe prometo!
- Não posso... Infelizmente não posso. É uma questão de juízo, de minha parte.
Podia sim, mas eu deveria sentir mais um pouco o peso de tentar ser “melhor” do que eles durante tanto tempo. É, Fritz, agora reze em comboio, seu corno sonhador, reze para que a sociedade lhe dê alguns dos seus feijões mágicos sagrados.
- Muito obrigado; também não posso culpá-la por isso, senhora. Obrigado pela atenção. Tenha um bom dia.
Enquanto eu já estava na porta para sair, a velha simpática da fábrica me chamou.
- Senhor Fritz!!
- Pois não – eu disse.
- O que diabos um escritor pode querer fazer em uma fábrica de caixas de papelão?
- Escrever, minha senhora. Tentar pagar a vida pra viver nela e escrever.
A velha ficou parada me olhando, como quem tenta desvendar um enigma antigo. Fui andando... O sol de janeiro do Rio de Janeiro... Tanta gente no mundo querendo um pouquinho desse sol. O problema desse sol é quando se está de calça jeans, sapatos e camisa de botão... Vira um inferno. E aqui não existe o vento do mar.
A maioria dos bairros aqui do subúrbio se parece muito. As cadeiras na frente das casas; as pessoas falando e falando; os vagabundos de botequim; os moleques soltando pipas, descalços. As casas são coladas umas nas outras, há muito asfalto e concreto, o calor é quase insuportável às vezes. Nem as árvores aguentam, vão ficando raras no caminho... A cabeça vai querendo parar, e você tentando trazê-la de volta. E ela volta na marra por obrigação. Entrei no meu ônibus.
N°118 – Tecidos Sammir
Estava lá o galã loiro das costureiras, fazendo pose numa cadeira esburacada de couro preto, atrás de uma mesa lascada nas pernas. “Senhor Djalmir Pereira – Gerente administrativo”, dizia a plaquinha padrão da firma.
- Senhor Fritz, o problema aqui é a sua experiência... O senhor nunca trabalhou como vendedor, nem como assistente de estoquista, nem nada; então, não temos nada plausível para o senhor. A não ser que a diretoria peça para eu contratar um artista... Nesse caso...
- Oh, cara, se eu fosse um artista dos bons não estaria aqui de penico na mão pedindo qualquer emprego.
- Pois é, mas infelizmente não temos vaga para o senhor; ao menos nada que seja bom para o senhor fazer.
- Ah, cara, uma porra que não. Tenta escrever um espetáculo qualquer de dois atos; um romance inteiro! Isso aqui eu faço com o pé nas costas! Tenta você fazer o que eu faço: isso aqui é moleza, é só pra pagar a luz e a impressora.
- Não há VAGA!
Fui embora. Sujeito babaca... Deve ser um grande funcionário, um desses que se erguem ao patrão mais rápido que um pau novato pra massagista vip. Todo orgulhoso de enriquecer alguém com o sangue doado de uma vida inteira de trabalho honesto. Sujeito exemplar. Minha mãe iria gostar se eu fosse assim... Não, não iria não... Sem as minhas aventuras filosóficas sonhadoras sua vida seria mais tediosa ainda.
Calor miserável. Pra que serve o Rio dos sonhos se eu não tenho a praia... Aqui é bom para viver o sonho de possuir suas paisagens, ter dinheiro e acesso a elas... Quando tenho dinheiro essa cidade me parece a melhor coisa do mundo. Talvez seja. Um cara quando não está muito bem com a vida haverá de colocar defeito nas coisas. Com dinheiro tudo é ótimo no Rio... Se você está com calor compra um ar- condicionado; vai para a praia, enche a cara na orla... Você sai da parte quente e vai para a temperada, a parte que todos se lembram quando ouvem o nome da cidade. A parte dos cartões.
Eu perguntava pra minha mãe na infância:
- Quando vamos à praia?
- Quando mamãe tiver dinheiro... - ela dizia.
Pobre mamãe... Íamos bem pouco à praia. Ela merecia aquela praia mais do que qualquer pessoa que eu conheci até hoje.
Prometi voltar com um emprego pra casa. Falei que iria conseguir ajudar com algumas contas (ou dar no pé pra não fazer mais contas); o trabalho de escrever ficaria para depois: às vezes um homem faz o que um homem deve fazer. E era isso que eu estava fazendo. Sendo um homem comum, em busca de sobrevivência digna.
N°17 – Jornal de bairro Aviso Geral
Um homem bastante robusto e suado me atendeu com bastante pressa. Secava-se constantemente com uma toalhinha azul. Os ventiladores, no teto e na mesa, não pareciam fazer a menor diferença para aplacar o suadouro do gigante.
- Eu vim pelo anúncio de emprego.
O homem esticou o braço peludo pedindo meu currículo.
- Aqui não diz que você é jornalista... Nem tem formação superior alguma.
- Mas eu escrevo muito bem, senhor. Não é à toa que consegui publicar cinco livros...
- Foi na base da autopublicação?
- Em três casos eu paguei, mas...
(Corta irritado):
− Perfeito. Você me paga quanto pra ter uma coluna mensal no jornal?
- Depende: aceita uma cueca suada no rabo?
- Vocês, escritores de agora, acham que escrevem apenas porque ficam em casa escrevendo... Sobre o que você escreve?
- Ora, cara, eu escrevo de tudo: poesias, romances, contos, peças de teatro. Deixo a criatividade rolar.
- Então, você não me serve. Você escreve solto; aqui seria diferente: as matérias são indicadas e bem amarradas.
- Melhor ainda: aqui eu escreveria com mais clareza de ideias. E aproveitando o aprendizado da prática.
- Garoto... Vá estudar, ou continue escrevendo seus livros em casa.
- Seu Jairo, isso é tudo o que eu quero. Mas eu sou ferrado, entende? Não tenho mais como trocar a tinta da impressora, comprar papel, pagar a internet, a passagem do ônibus, nem roupas direito eu tenho mais. Não é uma coisa que eu possa escolher. Cheguei ao meu limite.
- Quanto você tem nos bolsos?
- Bem... (catei as moedas no bolso direito) Quatro reais e trinta centavos.
- Te pago 80 reais por uma faxina completa no jornal.
- Tá me sacaneando...
- Por quê...? Um escritor não pode maltratar as mãozinhas?
- Não é isso, cara, até boxe já lutei, só que... Poxa, mas... Uma ova, cara! Tudo bem, me passe logo o material, vou deixar essa porra toda brilhando! É isso aí.
- Beleza.
O gordo trouxe o avental e o carrinho de limpeza com as coisas, a faxineira dele estava de licença e desde então aquele lugar tornou-se um verdadeiro lixo. Comecei lá embaixo, no primeiro andar, e foi o dia mais longo de toda a minha vida até chegar ao segundo e último andar... Isso deve ter durado umas cinco horas ao todo, mas parecia uma vida inteira. Lembrei-me dos comentários dos leitores, das bienais que ainda não fui; do baú de rabiscos que guardo comigo... Lembrei-me das plateias sorrindo até das piores piadas; dos presentes; lembrei do cafezinho com Paulo Autran em frente ao teatro do Leblon... Que cara legal era aquele...
“Tem fogo”, ele disse.
“Tenho, Paulo! E por você eu traria fogo até do inferno!”
O velho riu, fumamos cigarros juntos... Tempos depois ele se foi deste planeta esquisito. O melhor ator que eu já vi me tratou como um cara igual a ele. “Grande Paulo Autran. Lembrei-me de você na faxina...”
- Senhor Jairo. O prédio já está uma beleza. Se eu não conseguir vender meus livros sei que dou conta de faxinar. É uma merda. Mas dou conta.
- Viu, escritor, trabalho não dói em ninguém.
- É verdade. Mas escrever dói. Principalmente se for um cretino qualquer tentando escrever algo bom. O senhor escreve?
O nojento não respondeu, jogou as notas suadas sobre a mesa, ronronou algo e depois atendeu ao telefone. Saí dali e fui direto procurar um mercado. Comprei dois vinhos baratos e duzentos gramas de mussarela. Um pacote de papel ofício fechado, dois maços de cigarro. O resto do dinheiro eu dei para inteirar na conta do telefone.
- Calma, meu filho, Deus é grande.
- Esse é o problema, velha... Se ele fosse menorzinho me achava mais depressa.
Amanhã tenho cinco anúncios pra tentar. Estou escrevendo um livro também. Vamos ver se eu consigo mudar as coisas.
Adorei os três contos, Pitz =) Muitão *-* Principalmente, porque, de certa forma, falam um pouco sobre mim! Não sou escritora, mas sou desempregada...
ResponderExcluirE olha... preciso contar uma coisa para o Fritz: querido, por mais que eu queria acreditar no contrário, por mais que todos queiram que eu acredite no contrário, a verdade é que uma faculdade não faz com que arrumar emprego seja uma tarefa mais simples... pelo contrário... você acaba querendo um cargo na sua área e, portanto, limita o universo de vagas... fica ainda mais difícil...
Beijos,
Nanie desempregada, mas ainda com esperança =)
http://naniedias.blogspot.com
Todos n'so temos um pouquinho de Fritz, né. Gostei bastante.
ResponderExcluirMuito obrigado, Nanie!
ResponderExcluirNão tenho dúvidas de que você vai conseguir um emprego bacana antes do Matheus Fritz. Mas é verdade, se você é formado em X vai querer trabalhar X. É até uma injustiça quando ocorre o contrário. Força, garota!
Bjão!
Todos nós, Felipão. Um lado teimoso e artístico. Mesmo que a pessoa o desconheça.
ResponderExcluirUm abraço!
Adorei Allan, não tem como não se identificar com o Fritz. Procurar emprego dá mais trabalho do que trabalhar mesmo :)
ResponderExcluirBjuss
Obrigado, Cláudia!
ResponderExcluirRealmente, ainda mais quando se quer trabalhar em outra coisa, como é o caso do Matheus Fritz.
Acaba dando muito trabalho trabalhar!
Bjão.
Olá , eu também me chamo Matheus Fritz :) não é mentira !!!!!!!!!! juro mesmo !
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