Eram oito horas e trinta minutos da manhã, estava passando um café forte para acordar; pensava em ganhar algum dinheiro quando o telefone tocou.
- Alô.
- Joel Montanha, o lutador? - quis saber o cara.
- Não, Joel Lucas, o “poeteiro” sem grana - eu disse.
- Ah, caceta, me falaram que você era um pugilista peso pesado dos bons!
- Sim, há dez anos mal vividos, depois disso muita água passou por debaixo da ponte. Acho que a agenda telefônica de vocês está ferrada. Deve ser Alzheimer...
- Mas, Joel, tu nunca mais lutou nada mesmo?
- Não, cara, só na rua... Umas brigas de galo manso, que não levam a nada... E ainda bato no meu saco de areia, mas...
- Já está ótimo assim! Só preciso de um cara para fazer
sparring, nada demais. Três dias, trinta reais por dia, mais a passagem e a alimentação. O que me diz?
- Eu fumo cigarro, e...
- Ok, o meu atleta vive fumando às escondidas!
- Legal. Mas prefiro quarenta e cinco por dia, o que me diz?
- OK, campeão, ok...
- Agora me fala aí, por que não tem outro cara mais inteiro para fazer luvas com o seu lutador?
- Bem, o garoto é bom demais, sabe e, mesmo com proteção, ele, às vezes... Bem, ele... Acerta uns bons golpes. Entende?
- Os caras têm medo dele...?
- Não é medo; é; como eu posso te dizer...? Respeito!
- Sei, sei...
Laércio Grandão, o empresário do garoto de ouro que ganhara as últimas vinte lutas por nocaute nos primeiros assaltos, me passou o endereço e as coordenadas dos três dias de treino. Em quatro horas eu estaria trocando socos com um ex-detento da FEBEM, um garotão de 115 Kg, feito de pedra (contra meus 94 Kg feitos de massinha de modelar), com sangue nos olhos, batendo no mundo que o espancara com toda a força do abandono. Fantástico! Talvez uma boa surra me devolvesse aquela velha vontade de lutar por mim mesmo. Parecia uma boa.
Nunca fui um lutador medíocre; talvez, apenas mais um limitado; possuía uma pancada de direita milagrosa, disposta a me salvar de uma avalanche de socos mais ágeis, braços mais fortes. A guarda era sempre alta; as pernas duras; o queixo não era mole; dava pra aguentar pancadas firmes até eu soltar a marreta no oponente: um lenhador, batedor. Lento, porém mortal. Pego-me lembrando certas lutas amadoras em que o oponente era peso pesado de músculos, enquanto o meu peso pesado era de massa espalhada. Os lutadores (principalmente quando negros) dançavam pra lá e pra cá, socavam com uma velocidade incrível, soltavam mil
jabs em poucos minutos, retirando minha opção de raciocínio. Então, eu não raciocinava. Entrava disposto a esperar o momento certo para varrer o seu rosto com uma ou duas machadadas em forma de cruzados e diretos. Muitas vezes deu certo!
Uma vez na academia, altamente equipada, Laércio Grandão me recebeu com muita gentileza. Levou-me logo para longe do ringue, onde o garotão musculoso e tatuado (também com uma enorme cicatriz no pescoço) já me encarava feio. Deu-me uma bolsa azul com materiais novos para o treino.
- Esse moleque está vacinado? – perguntei ao Grandão, enquanto caminhávamos para o vestiário.
- Oh, sim, essa cara feia dele é normal. Ele tem raiva do mundo, mas é um cordeirinho na minha mão. O lance dele é ganhar dinheiro com Boxe; o meu também é. Se ele for cooperativo, posso ajudar.
- Entendo...
- O Barão passou poucas e boas no reformatório juvenil... Tinha de brigar até pra beber água e usar o banheiro. Cada mijada era um combate. Por isso, já é o campeão Sul-Americano dos Pesos Pesados.
- É... Na literatura é mais ou menos assim.
- Ah, meu amigo, você não sabe o que está dizendo!
- Nem você. Pode deixar, Grandão, avise quando o garoto estiver pronto para tentar me matar. Vou me aquecer aqui mesmo.
- Tudo bem. Em quinze minutos eu volto para chamar, ele só está terminando uma série.
- Beleza.
Por um segundo pensei: o que eu estou fazendo aqui? Não tenho condições físicas para cinco minutos de luvas com aquele monstrinho social. Eu deveria correr. É claro que deveria correr. Poderia, depois, escrever um poema sobre o lutador que desistiu definitivamente de lutar e fim de papo; ficaria tudo como história. Mas daí repensei e vi que, assim como o jovem sedento no ringue, eu também precisava liberar todo o meu ódio contido. E se não fosse esportivamente, como a situação permitia, poderia ser numa desgraça, como aquela vez em que um professor de boxe tailandês me cobriu de caneladas, equivocadamente, em um bloco carnavalesco. E, depois, eu quebrei − covardemente, é verdade − uma garrafa cheia de tequila em sua cabeça. Impressionante como muitos foliões não se incomodaram em sambar sobre uma poça de sangue alcoólico.
- Já está pronto? – perguntou-me Grandão na porta.
- Já, vamos ao abate.
- O cara me falou que você tem uma pegada boa.
- Pois é...
Agora, no ringue, frente a frente, dava para perceber a altura e as dimensões do Barão: as cicatrizes, a tatuagem ‘Jesus é Poder’. Era realmente um atleta do massacre. Iria destruir um poeta relaxado, fumante, e que vive abusando do álcool. Seria diversão pura.
Assim que começamos a luta, tentei soltar alguns
jabs para provar que não era bobo, mas a distância dos golpes mostrava-se errada. Minhas pernas estavam mais duras do que nunca, as costas pareciam querer voltar para a cadeira de escrever. Então, o Barão começou a bater na plebe: UM, DOIS, TRÊS. UM, DOIS, TRÊS. Depois de dois minutos apanhando, passei a gostar de apanhar; considerei que a mão do garoto não era tão pesada assim. O mundo tinha mais peso na hora de bater. Era apenas rápido, valente, mas não um Deus.
TOMA! O primeiro golpe que eu encaixei. O moleque tonteou? Que diabos estão fazendo ultimamente com esse esporte?! Então, tome no queixo! E tome outra, e outra, e outra! E o campeão cai. Levanta-se assustado, logo depois, mas por um segundo sua boca de bueiro beijou a lona. A raiva dele já estava evaporando com o sucesso e a abdução de novidades, era só estampa. Minha fúria, sim, estava viva, e me tornava leve.
Após ele se levantar, entendi o porquê do cinturão. Foi uma sucessão de golpes, frente a frente, no meio do ringue, luta franca, até o infeliz acertar de jeito as minhas costelas cansadas. Então, eu caí. Fim de luta. O garotão aproveitou para se sentar no seu canto de cabeça baixa. Enquanto bebia bastante água, seu instrutor lhe confortava a nuca com uma toalha molhada. Eu falei, tentando me levantar devagar:
- Foram cinco minutos bem jogados, Barão.
- Foi sim - ele respondeu. - Você tem mãos de pedreiro.
- Só não quero mais lutar com você; hoje eu percebi uma coisa que me assustou um pouco.
- O quê?!
- Depois que me tornei escritor, aprendi a apanhar mais do que bater. Já não sirvo para lutar sem as palavras. Virei galinha morta. Sacou?
O Barão da FEBEM ficou conversando comigo durante meia hora, disse que gostava de ler poemas no reformatório, por serem pequenos e mais fáceis do que uma história inteira, sobretudo para quem ainda está começando a ler. Falou sobre a avó que o criara em uma favela; e as lutas, que começaram desde cedo. Depois, agradeceu pelo treino.
Grandão compreendeu a minha decisão de não fazer os outros dois treinos marcados, e mesmo assim me pagou 105 Reais, e um táxi para voltar com certo conforto.
- Por que tudo isso, Grandão?
- Ver um atleta acabado, bêbado, fodido, dar um cruzado daqueles no ensebado do Barão foi sensacional! Eu devia te dar o meu rabo se você quisesse. Depois desse susto, o merdinha vai ganhar o Mundial!
Filho da mãe (me conhecia desde o início)!... Barão e eu estávamos batendo no cara errado, afinal.
Esse grandão tinha que entrar na pancada, mais que cara safado! Ele chamou o Joel Montanha já sabendo que ele tinha abandonado os ringues, chamou para o Barão encaçapar ele no ring para fazer score de luta!!! Desgraçado!!!
ResponderExcluirBom conto gostei bastante!!!
Abraços
Maravilha! Rsrs...
ResponderExcluirEsse Grandão é 'maroto' mesmo, mas não dizem que o mundo é dos espertos? Pois, então...
Um esperto em cada esquina. Em qualquer situação.
Obrigado por comentar!
Um abraço.
Olá acabamos de abrir um blog de resenhas e estamos em busca de parcerias com autores!
ResponderExcluirPodemos?
http://obsessionvalley.blogspot.com/
Obrigada pela atenção.
Oi, Nana, seria ótimo.
ResponderExcluirMas estou sem material para te enviar (livros para resenhas, marcadores). Estou esperando o lançamento do meu próximo livro para recomeçar os trabalhos e preparar bastante material.
Eu é que te agradeço!